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Higiene e Cuidados com a Criança

Curiosidades

Magalhães, Maria das Graças Sândi - Usf,

Gt: História da Educação / N.02

Higiene e Cuidados com a Criança

Christo no Corcovado

Introdução

Segundo a Enciclopédia de Literatura Brasileira de Afrânio Coutinho (1990), o termo almanaque provém do árabe - almanach - que significa “o cômputo” ou “a coragem”. O mesmo verbete descreve os diversos tipos de almanaques editados desde a Antigüidade, como os científicos e de cultura geral e os primeiros almanaques editados no Brasil, como por exemplo o Almanack da Corte do Rio de Janeiro para o anno de 1811. Em relação aos almanaques de farmácia, o autor utiliza esse termo para definir as publicações que proliferaram no Brasil principalmente nos anos 20, editadas por laboratórios e distribuídos nas farmácias. Cita os mais famosos como o Almanach Illustrado de Bristol; o Almanak do Biotônico e o Almanack d’A Saúde da Mulher.

Embora editado por laboratórios, em alguns casos grandes empresas multinacionais, com ilustradores de renome e tiragem bem acima da média das obras literárias das primeiras décadas do século XX, os almanaques foram relegados à “indiferença” que atinge documentos não oficiais e “populares”, a ponto de tornar a pesquisa e busca por eles uma “caçada” a sebos e coleções particulares, na maioria dos casos. Somente no final dos anos 90 algumas pesquisas, vinculadas à universidades, chamaram a atenção para esse tipo de publicação(1).

O que se quer destacar, em relação a esse documento, é de que maneira o movimento de higienização e saneamento, que ocorreu na primeira metade do século XX, se refletiu nos almanaques, especialmente em relação aos cuidados com a criança.

Para tanto, foram tomadas como fonte de pesquisa as publicações do Laboratório Nutrotherapico (Dr. Raul Leite & Cia.), do Rio de Janeiro, nos anos de 1925, 1926 e 1932, principalmente por sua ênfase na infância e pelo momento histórico em questão.

E Casaremos Depois (Samba Therapeuitico)

I - Higienização

A questão da higiene e saúde se manteve como parte importante do discurso nacionalista durante pelo menos as três primeiras décadas do século XX. O almanaque ajudou a difundir essas idéias, como podemos observar no editorial do “Almanack do Laboratório Nutrotherapico” (1932, p.1):

O argumento inicial introduz critérios de uma sociedade industrializada, baseada na produtividade, e para a qual o tempo humano deve ser o tempo produtivo, equivalente a uma quantia em dinheiro. Assim, para esse almanaque brasileiro, utilizar um padrão de comparação com os Estados Unidos é um recurso para ligar o cuidado com a saúde ao conceito de progresso e produtividade, cujo ideal seria o padrão norteamericano.

Ao definir o “valor” do brasileiro, indica-se a fonte: Afrânio Peixoto e o livro “Noções de Hygiene”. Nesse caso, os editores procuram estabelecer um diálogo com os leitores mais esclarecidos, que também tinham acesso aos almanaques de farmácia. Esse livro foi adotado em diversos cursos secundários e faculdades para a disciplina de higiene(2), e citá-lo produzia um efeito de veracidade à informação.

Namorados

...Em todos os paizes adiantados têm sido feitos calculos de modo a se saber ao certo quanto vale um cidadão. Assim, na America do Norte foi verificado que um norte-americano vale cerca de 10.000 dollars, ou sejam 140 contos em nossa moeda. Em nossa patria o sabio hygienista Dr. Afranio Peixoto calculou o valor do brasileiro em 42 contos de réis no seu livro “Noções de Hygiene”. Porque valemos menos que o norte-americano, o inglez, o francez, ou o cidadão de outra terra? Não é porque nós sejamos menos intelligentes ou menos activos e emprehendedores, mas é porque nós cuidamos menos de nossa saúde...

O interesse comercial e a pouca eficácia dos tônicos oferecidos pelos almanaques obscurecem um outro aspecto : a utilização do almanaque como difusor do ideário higienista. Atingindo milhares de famílias, o almanaque despertou o interesse de médicos sanitaristas, como Belisario Penna, como demonstra a publicação das regras para combater o amarelão, que leva sua assinatura, no Almanack do Laboratório Nutrotherapico de 1932, p.11:

Regras que devem ser decoradas e praticas pôr toda , afim de combater e extinguir o amarellão Não defecar nem atirar fezes sobre a terra. Em trabalho no matto ou nas lavouras, cavar um pequeno buraco de um palmo, mais ou menos, e satisfazer nelle a necessidade, cobrindo-o em seguida, como faz o gato com a propria terra retirada.

A primeira edição do livro foi em 1914. Na 6ª edição, de 1935, pode-se ler logo após o título, na folha de rosto, os seguintes dizeres: “6a.edição, revista e adaptada ás Escolas Normaes, aos curso de Farmácia e Odontologia, ás Escolas Profissionaes, aos Ginasios e Liceus.” PEIXOTO, A., Noções de Higiene, Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1935, p.3.

Sintomas das Doenças Mais Frequentes

Não esquecer de lavar as mãos com agua e sabão antes das refeições, logo depois de haver defecado e sempre que pegar em terra, em mãos sujas de outras pegadas, em fructo, verduras e legumes provenientes de lugares suspeitos. Não beber agua suspeita de contaminação pôr fezes, sem ser filtrada ou fervida. Não dormir, absolutamente com a roupa usada durante o dia. Procurar pôr todos os meios habituar-se ao uso do sapato ou da bota. Além de com esse bom costume, evitar-se em grande parte o amarellão, evitam egualmente o tetano, as picadas de cobras e de outros bichos venenosos, as topadas, as arranhaduras, os ferimentos pôr espinhos, pôr pontas de pedras e de pao que causam, às vêzes, sérias perturbações e mortes. A creança que apanhar o vício de comer terra, barro, carvão e caliça, não deve ser castigada e sim tratada contra os vermes. Eliminados estes com remédio próprio, desapparece aquelle vicio. (Dr. Belisario Penna).

Especificamente em relação à infância, o Almanaque também foi veículo para a discussão sobre a “melhoria da raça”, ao aleitamento materno. Médicos como o Dr. Moncorvo Filho, fundador do Instituto de Proteção e Assistência à Infância do Rio de Janeiro, incentivavam essa prática. O IPAI-RJ, fundado em 1899 oferecia diversos serviços ligados à proteção da maternidade e infância, entre eles o “gotas de leite” (Kuhlmann Jr., 1998). Essa campanha também ganhou o espaço do almanaque, como fica evidente no anúncio do Almanack do Laboratório Nutrotherapico de 1926 (p.18):

Regule a Vida do Seu Marido

Para o leite materno não há substituto perfeito.

Até cinco mezes só se deve dar leite a criança.

Pesai vosso filho todas as semanas.

A syphilis e o alcool são causa da degeneração da raça.

Evite-os se quizerdes filhos fortes. Antes do casamento procurae vosso médico.

A campanha em relação ao aleitamento também combatia o uso das amas de leite, recomendando cuidado no emprego desse tipo de serviço (Almanack do Laboratório Nutrotherapico de 1926, p.13):

As amas de leite, as amas seccas e em geral todos os criados para o serviço domestico devem ser perfeitamente sãos do peito; os que apresentarem o menor signal de tuberculose não serão de fórma alguma acceitos.

Além da difusão do aleitamento materno, o uso de remédios modernos, diferentes das mezinhas populares, fabricados por laboratórios conceituados, fazia parte do novo ideário de país civilizado que se queria atingir. É o que talvez possa justificar a surpreendente recomendação de médicos respeitados a determinados remédios, muitas vezes usando o nome de instituições, como o da Faculdade de Medicina do distrito federal, ou do próprio IAPI, como podemos ver na carta de Moncorvo Filho ao Laboratório Nutrotherapico, no almanaque de 1926 (p.11), na qual o médico recomenda o uso do Laxo-Purgativo Infantil, afirmando que testou o produto nas crianças do Instituto.

O Maior Rigor Científico

Não está claro se havia algum acordo entre os laboratórios e essas instituições, mas este tipo de material publicitário é um elemento presente nas três publicações utilizadas nesse trabalho.

II. CUIDADOS COM A CRIANÇA

Em relação à criança, podemos observar que o almanaque está impregnado do discurso sobre a fragilidade da criança e da necessidade de cuidados. O progresso do país estava fortemente associado a imagem da infância, como analisa Olga Brites (1999, p.87):

Havia toda uma cultura da concepção do ser criança, nessa perspectiva, que exigia investimentos para solucionar problemas econômicos e sociais. A debilidade na infância, portanto, não era só um problema de âmbito privado, a ser solucionado no interior da família, mas uma questão de ordem pública, que atingia a Economia e a Sociedade no Brasil.

Cuidar do filho, portanto, não era mais uma questão particular, mas decisiva para o futuro do país. As noções de cuidado e tratamento para as crianças estão presentes nos almanaques pesquisados através de tabelas de pesos e medidas, na descrição dos períodos de dentição e nos “Conselhos às Mães”, além da recomendação dos tradicionais tônicos fortificantes e depuradores do sangue, dos vermífugos, laxantes, cremes e farinhas infantis(3):

A análise dos dizeres no selo da marca registrada do Almanack do Laboratório Nutrotherapico são sintomáticos em relação à essas idéias:

A saúde e a robustez constituem um começo de fortuna.

A balança e o relógio são a bússola da saúde da criança.

Cuide-se sem demora e fortaleça seu filho.

Neles podemos observar duas idéias interligadas: a importância da saúde (robustez) e da disciplina (balança e relógio) para se atingir a fortuna

(progresso). Além disso, também o adulto teria a responsabilidade de cuidar-se no presente (fim das doenças endêmicas que causariam a “impureza” do sangue) para garantir o futuro (a criança).

A criança como representação do futuro do país foi tema recorrente em diversas publicações, além dos almanaques, como a revista Infância, publicada pela Cruzada Pró-Infância, que patrocinava em 1936 o Concurso de Robustez Infantil e que trazia em seu texto de outubro do mesmo ano a seguinte chamada: “Nação forte é quem tem filhos fortes” (Brites, 1999, p.88).

Sua Beleza deve Provocar a Admiração dos Outros, Senhorita!

III. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Através desse estudo preliminar, procurei chamar a atenção para o papel que almanaques desempenharam na difusão das idéias nacionalistas e higienistas no começo do século XX e de como essas idéias atingiram a questão dos cuidados com a criança, num período em que a indústria de produtos e alimentos infantis era incipiente no Brasil.

Uma mesma receita servia tanto para o meio rural, ávido consumidor dos almanaques, devido a ausência dos médicos, como para as cidades em expansão, que com sua industrialização crescente, seus operários e sindicatos pressionavam o Estado com reivindicações econômicas, de saúde, moradia e escola para todos.

Introduzindo hábitos novos, como a adoção de farinhas e cremes infantis, ou empurrando tônicos fortificantes, incentivava-se um novo olhar sobre a criança, não só como consumidora, mas também como perspectiva de um país sem diversidades, unificado e sem conflitos sociais.

(1) Podemos citar as teses de doutorado de Vera Casa Nova e Margareth Brandini Park, publicadas respectivamente em 1996 e 1999, que abordam o tema dos almanaques de farmácia.

(2) A luta contra as doenças que afetavam o país e que, na visão dos higienistas, impediam seu progresso, assume, no Almanaque do Laboratório Nutrotherapico, a forma de propaganda os produtos da empresa, como podemos ver nas figuras abaixo (1932, p.05 e 11):

(3) DR. RAUL LEITE & CIA. Almanack do laboratório Nutrotherapico - edições citadas.

IV - BIBLIOGRAFIA:

BRITES, Olga - Imagens da Infância - São Paulo e Rio de Janeiro, 1930 a 1950, Tese de Doutorado em História, defendida na PUC-São Paulo. Digitado. 1999.

COUTINHO, Afrânio e SOUZA,J. Galante - Enciclopédia de Literatura Brasileira, Brasília: MEC, 1990, dois volumes.

KUHLMANN JR., Moysés - Infância e Educação Infantil: uma abordagem histórica. Porto Alegre: Mediação, 1998.

NOVA, Vera Casa - Lições de Almanaque - um estudo semiótico. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996.

PARK, Margareth Brandini - História e Leitura de Almanaques no Brasil. Campinas, SP: Mercado de Letras Editora : Associação de Leitura do Brasil; São Paulo: Fapesp, 1999.

PEIXOTO, A., Noções de Higiene, Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1935.

V - FONTES: Guia de produtos do laboratório Nutrotherapico para o ano de 1925, Rio de Janeiro, Dr. Raul Leite & Cia.

Almanack do Laboratório Nutrotherapico para o ano de 1926, Rio de Janeiro, Dr. Raul Leite & Cia, fundado em 14.11.1921.