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A Memória Popular em Almanaques

Curiosidades.

Livro faz um panorama das páginas ingênuas que, com suas curiosidades, distraíam e faziam a cabeça dos brasileiros no passado.

Isabel Lustosa

Creme Dental Kolynos (ilustração)

Do Almanak aos Almanaques

Org. Marlyse Meyer

Ateliê editorial, 208 páginas

Machado de Assis, na apresentação do Almanaque das fluminenses, publicado no Rio em 1890, propõe-se a nos contar como se inventaram os almanaques. Abre, no entanto, o seu relato com uma exclamação: ''Some-te, bibliógrafo! Não tenho nada contigo. Nem contigo, curioso de histórias poentas. Sumam-se todos; o que vou contar interessa a outras pessoas menos especiais e muito menos aborrecidas. Vou dizer como se inventaram os almanaques''.

Mas Machado não revela como se inventaram os almanaques, antes inventa ele mesmo uma deliciosa alegoria envolvendo o Tempo e a Esperança. No entanto, sua exortação de que não escrevia para os bibliógrafos e os curiosos de ''histórias poentas'' não cabe nas páginas desse belo catálogo da Exposição de Almanaques Brasileiros, que interessará sobretudo a essas pessoas que, vistas de pertinho, nada têm de aborrecidas.

É Também o Nosso Sonho o do Monteiro Lobato

Promovida pela Fundação Memorial da América Latina, a exposição foi imaginada para acompanhar e prolongar a sessão de encerramento do Colóquio Internacional ''Os Almanaques Populares: da Europa à América - gênero, circulação e relações interculturais'', realizado em Campinas e em São Paulo, em 1999. Exposição e colóquio são realizações de duas grandes damas da vida cultural brasileira que, de São Paulo, influenciam o meio acadêmico na preferência por temas originais, vivos e apaixonantes: Marlyse Meyer e Jerusa Pires Ferreira.

Cultura - Jerusa, no texto que incluiu no catálogo, lembra dos almanaques de sua infância dos quais tantas certezas e informações eram retiradas e transmitidas. Para ela, o que torna o almanaque tão específico em meio a outras publicações populares é o equilíbrio entre um conjunto estabilizado e a inserção do novo. Quem produz um almanaque parte sempre ''de uma espécie de matriz virtual que se atualiza ou que se linka, cada vez que determinado segmento de informação se faz necessário.'' Jerusa chama a atenção também para o papel civilizador dos almanaques no Brasil, levando cultura e informação aos mais distantes sertões, aos povoados mais afastados, e mesmo nas cidades, ''numa integração de domínios rurais e urbanos, transitando entre classes sociais, exercendo a aproximação efetiva de repertórios.''

Primeiros Socorros

Diretamente vinculados ao calendário do ano a que se relacionavam, traziam os almanaques coisas básicas como jogos, divertimentos, charadas, informação práticas para a família, simpatias, receitas. De uma publicação tão popular não podiam estar ausentes os provérbios. O Almanaque sul-americano para o ano de 1941, organizado por Álvaro de Carvalho, apresenta uma enorme relação com pérolas tais como: ''Mais caro é o dado que o comprado''; ''Mais custa o falso prometer do que o pronto recusar''; ''Mais perde em amizades quem mais teima nas verdades''; ''Mais quero quem me adore que quem faça com que chore''.

Coisas inusitadas, curiosidades da natureza ou abordagens originais sobre velhos temas também aparecem nas páginas dos almanaques. Os Ecos marianos da basílica de nossa senhora Aparecida, publicado pelos padres redentoristas em 1958, traz uma interessante matéria intitulada ''Nariz e narizes'', com um nariz descomunal no alto da página e imagens de narizes célebres da história ao longo de toda a matéria. E a intenção não era humorística.

Elixir de Mastruço para Moléstias Pulmonares

Poesia - Também não era humorística a intenção do autor do curioso estudo publicado no Almanach de Jundiahy, 1911, que tenciona demonstrar a influência de Byron sobre o poeta Álvares de Azevedo. Diz aquele crítico literário que ''um vácuo tenebroso cercou o alvorecer da vida de Byron: ''ele não encontrou os sorrisos de sua mãe, a ternura dos olhares maternos e nenhuma carícia, onde o seu coração se acalentasse para viver e amar.'' Já para Álvares de Azevedo: ''cantaram-lhe aos ouvidos as melodias dulçorosas do amor materno, e seu coração poude reclinar-se nos braços enflorados de bênçãos e carinho.''

Não se pode deixar de mencionar o inacreditável soneto do poeta Isaías de Oliveira em homenagem a Nietzsche que foi publicado no Almanaque brasileiro Garnier para o ano de 1905.

''Ele surgiu nas plagas da Alemanha, / espargindo grandiosos pensamentos, / cheios de luz, de másculos acentos, novo Christo pregando na montanha.

Sígnos Astrológicos (Ilustração)

Brotou-lhe dos lábios a doutrina estranha / feita de sóis, delírios e tormentos, / inimitável em deslumbramentos / que o mundo das idéias todo banha.

Cegou-o tanta luz! Perdeu o brilho / a inteligência audaz do rebelado, / entrando da loucura o curvo trilho...

E o grande ateu nas noites tormentosas / de seu delírio atroz, inominado: / o Christo via em linha fulgurosas!''

Mas havia também os que publicavam peças intencionalmente humorística como O médico do povo, lançado em 1876 pela Laemmert. Seguindo o princípio que fazia com que os textos apresentassem coisas úteis para a agricultura como as fases da lua, o almanaque publicou naquele ano uma divertida ''Astronomia do casamento'' em versos e com ilustrações igualmente humorísticas. Cito apenas alguns dos trechos mais significativos:

''Ai, Jesus... eu tenho cócegas / dito isto à hora da ceia; / e os noivos às escuras: / Casamento em lua cheia. (...)

Hoje não sais comigo? / - É boa. Não me apoquentes. / Se o marido já diz isso: / Casamento em quarto crescente. (...)

Se a esposa na janela / sorri a qualquer passante, / coitadinho do marido: Casamento em minguante. (...)

Se o marido que é pimpão / na mulher prega uma sova / e esta grita - Ó da guarda! : Casamento em lua nova. (...)

Eis aqui a Astronomia / mal-certa do casamento... / tomem cuidado, há mil perigos, / os casados tomem tento!''

Francobilina - Cólicas do Fígado

Lobato - Os almanaques apresentados no catálogo estão divididos em duas categorias: almanaques gerais e almanaques de farmácia. Mas, afora uma pincelada de ciência popularizada que aparece nos últimos para justificar a propaganda dos remédios produzidos pelos laboratórios que os financiam, os almanaques de farmácia pouco diferiam dos almanaques gerais. Naturalmente que o mais famoso de todos deste gênero foi o Almanaque do biotônico Fontoura, surgido em 1920. Elaborado e ilustrado por Monteiro Lobato foi ali que se popularizou a figura do Jeca Tatu.

O primeiro almanaque de farmácia que apareceu no Brasil foi o Pharol da medicina, publicado pela Casa Granado, que circulou de 1887 até a década de 40. Depois é que vieram os almanaques dos remédios Saúde da mulher e Bromil, que tiveram entre seus colaboradores caricaturistas como J. Carlos, Kalixto, Raul Pederneiras e Vasco Lima. Além de poetas e escritores como Felipe e Alberto de Oliveira, Olavo Bilac, Raimundo Correia e Bastos Tigre.

Se o nosso escritor maior foi uma colaborador de almanaques, seu contemporâneo português, Eça de Queiros produziu, escreveu e publicou o seu próprio: o Almanaque enciclopédico que teve duas edições, uma em 1896 e outra em 1897. Foi para a primeira delas de Eça escreveu:

''Só o almanaque verdadeiramente nos penetra da realidade de nossa existência, porque a circunscreve, a divide em talhães regulares, curtos, compreensíveis, fáceis de desejar e depois fáceis de recordar por terem nome e quase terem forma, e onde se vão depondo e onde se vão ficando, os fatos da nossa feliz ou desgraçada história. As datas, só elas dão verdadeira consistência à vida e à sorte''.

* Isabel Lustosa é pesquisadora da Casa de Rui Barbosa e autora de 'Insultos impressos: a guerra dos jornalistas na Independência' (Companhia das Letras) Copyright© 1995, 2000, Jornal do Brasil, Primeiro Jornal Brasileiro na Internet

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