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O Vasto Saber da Cultura de Almanaque

Curiosidades

Paulo Miceli

Livro ilumina e explora função civilizatória das publicações gratuitas que unem prazer e ciência

Arte Culinária (Receitas)

Muita gente deve lembrar de um almanaque de farmácia na infância, feito de páginas lidas com prazer e sem compromisso. Ao mesmo tempo, estes almanaques vinham com o lastro das informações sérias, já que eram respaldadas por remédios e farmacêuticos. Essa dualidade, do prazer trivial ao lado do cunho científico, da informação útil próxima à curiosidade, não povoa apenas os nossos almanaques da infância, segundo Margareth Brandini Park, pesquisadora do Centro de Memória Unicamp e professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Práticas Educativas da Unifran-SP. Em seu livro Histórias e leituras de Almanaques do Brasil, (Fapesp, ALB/Mercado das Letras, 1999), baseado na sua tese de doutorado orientada pela professora Sarita Maria Affonso Moysés, Margarete vira centenas de deliciosas páginas de almanaque para mapear a importância dessas publicações e descobre que essa ambigüidade ajudou a ordenar a vida de várias gerações.

Margarete se debruçou sobre títulos como o Almanaque Granado (RJ), o Almanaque Biotônico Fontoura (SP) e o Renascim Sadol (SC). Mas seu pulo do gato foi entrevistar leitores e ler suas cartas, mergulhando mais profundamente do que apenas descrever aquelas bem-sucedidas receitas editoriais – aliás presentes em muitas das revistas que hoje estão em nossas bancas. O historiador cultural Roger Chartier, cuja produção situa-se na linha da história da leitura e do livro, assina o prefácio. Segundo ele, a análise da leitura e da escritura das cartas feita no livro de Margarete busca compreender as ligações entre elas, inscrevendo o trabalho em uma das mais novas orientações de pesquisa dos últimos anos. "Entrecruzando as cartas endereçadas por 246 leitores e leitoras aos redatores do Almanaque Renascim Sadol, do Laboratório Catarinense, com uma série de entrevistas com alguns dentre estes leitores, ela constrói uma tipologia das maneiras de ler o almanaque e mostra que a relação com estes livros é, freqüentemente, tão forte quanto aquela estabelecida com o texto sagrado", escreve Chartier. E as relações com os leitores são fortes vínculos no mundo dos almanaques. "Eles não só incorporam os pedidos dos leitores como publicam suas colaborações", explica Margarete.

Magra Espantalha! + Quebra Cabeças

Estes leitores, por sua vez, buscavam no almanaque um pouco de tudo, como conta no livro Vicente de Campos, agricultor filho de escravos nascido em Agudos, em 1916. Ele diz que, na sua infância no orfanato, os almanaques ficavam ao lado da Bíblia. Na fazenda, a cozinha exibia necessariamente um exemplar. Segundo Margarete, o almanaque estava em todo lugar e passava pelas mãos de todos, por ter um papel extremamente versátil. "Trazia, entre outras coisas, a época de plantar, as histórias que seriam lidas coletivamente, as receitas, as dicas de saúde. Tinha até uma cordinha, pois ficava pendurado em lugar de acesso fácil para quem quisesse consultar".

Na aparente trivialidade do Almanaque, Margarete detectou um processo civilizador, que inclusive ajudou no processo de integração dos imigrantes, ao ganhar, por exemplo, traduções para o japonês e alemão. "O almanaque não só trazia um lote de conhecimentos importante como ajudava a ordenar o tempo, por chegar sempre na mesma época e mapear anualmente as vidas e as tarefas das pessoas". Então, o velho almanaque não faz juz à expressão "cultura de almanaque" para designar algo depreciativo, mas desempenha justamente o oposto: um baluarte da expressão escrita e visual que aproxima a cultura legítima-erudita da desqualificada popular. (M.B.)

Fraco Esquelético! + Quebra Cebeças

Poderosos livrinhos

Paulo Miceli

Faz quinhentos anos, pouco mais ou menos, que nasceu François Rabelais, um dos mais importantes artistas do humanismo europeu. Um dos pés de Rabelais apoiava-se em imensa erudição; o outro enraizava-se na língua e na cultura do povo francês, produzindo-se, assim, rara síntese entre o erudito e o popular, que é onde se encaixam seus almanaques e prognósticos. Rabelais, escritor de almanaques?

Quem desconhece a história desse gênero tão peculiar de publicação pode espantar-se duplamente, seja por sua antigüidade, seja pelo envolvimento de grandes escritores com essa produção cultural de tão larga penetração popular. No Brasil, para citar um nome apenas, recorde-se Monteiro Lobato, "almanaqueiro" prolífico, criador do Jeca Tatu, um dos tipos mais populares a povoar a imaginação dos leitores de um almanaque editado sob chancela da indústria farmacêutica. Na imagem do caipira, levado às telas do cinema por Mazzaropi, quanta publicidade e quanta propaganda ideológica não fez a cabeça de pais e filhos para testar os milagres de poderoso tônico capaz de aprimorar a "raça" e engordar a esquálida figura do pobre homem do campo ? Como seria de se esperar, a importância dos almanaques acabaria atraindo a atenção dos historiadores, principalmente daqueles mais próximos da história da edição e da leitura; em suma, da chamada história cultural.

Biscoitinhos da Vovó (Receita)

Pois bem, foi para discutir a história do almanaque nesses quinhentos anos que, em outubro passado, estiveram reunidos na Universidade de Versailles, em Saint-Quentin-en-Yvelines, dezenas de pesquisadores de vários continentes e países para discutir seriamente (mas não sisudamente, como convém ao gênero) os múltiplos aspectos que envolvem a saborosa publicação.

No mesmo mês, com apoio da Fapesp e Faep-Unicamp, realizou-se na Unicamp - com uma extensão para o Memorial da América Latina - a edição brasileira do colóquio. Mais modesta, por conta das vacas magras, aqui estiveram alguns dos mais importantes pesquisadores nacionais e estrangeiros. Seria melhor se pudéssemos dizer que o afluxo de interessados foi enorme... Não foi. Poucos estudantes e professores, quem sabe por se achar que em tempos de crise conversar sobre almanaques pode distrair, perigosamente, o espírito de matérias mais importantes. Pena, porque o poderoso livrinho, um dos veículos de grande importância, por exemplo, na França de 1789, talvez ajudasse a empurrar para longe o clima de tempestade que algum lunário perpétuo fez estacionar sobre as terras do Jeca Tatu? No seu Almanaque, Chico Buarque quer saber o signo do capeta e pergunta "quem tava no volante do planeta que o meu continente capotou?" Você sabe? A ciência produz conhecimento sobre o modo de dormir das ostras, mas não é muito convincente quando tenta responder às charadas que o presente nos arma.

Jogo dos 7 Erros

Chico Buarque vai continuar sem resposta, mas no espaço em branco que "sobra", em espírito de almanaque, é possível colar a voz –sem dono – de Rabelais, para iluminar estes nossos tempos sempre difíceis: "Este ano os cegos hão-de ver muito pouco e muito pouco hão-de ouvir os surdos, os mudos não dirão quase nada, os ricos andarão um pouco melhor que os pobres e os saudáveis melhor que os enfermos. Muitos carneiros, bois, porcos, aves, frangos e patos vão morrer, mas a mortandade será menos cruel entre os macacos e os dromedários. A velhice será este ano incurável por via dos anos passados. Os que tiverem cólicas muitos correrão para os assentos. (...) E por quase todo o lado vai imperar uma doença terrível e temível, maligna, perversa, assustadora e desagradável que afligirá muita gente. (...) Averróis chama-lhe falta de dinheiro".

Testes - Quebra Cabeças

Verte folium, isto é: vire a página!

Paulo Miceli – é professor do Departamento de História e Diretor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)

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Curiosidades

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